A viagem dos emigrantes
O quadro Navio de Emigrantes, do pintor Lasar Segall (1891-1957), nos leva a bordo dos navios que faziam as travessias transoceânicas até meados do século XX, cheios de refugiados de guerra e emigrantes. Foi pintado entre 1939 e 1941, em plena Segunda Guerra Mundial. Judeu proveniente da Lituânia, o artista sentiu a perseguição na própria pele e emigrou para o Brasil nos anos 1920. O impacto provocado por essa obra, um óleo sobre tela medindo 2,30m X 2,25m (hoje no acervo do Museu Lasar Segall em São Paulo) é impressionante. Os navios de emigrantes – e as embarcações precárias carregadas de desesperados que hoje cruzam o Mediterrâneo rumo à Europa – trazem uma alegoria em si: a esperança.
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Lasar Segall. Navio de Emigrantes (1939-41)
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Outro quadro significativo é Naufrágio do Sírio, de Benedito Calixto (1853-1927) – no acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Pintado em 1907, representa o naufrágio do navio italiano Sírio ao largo da costa espanhola, em 1906. De acordo com a Fundação Pinacoteca Benedito Calixto, de Santos (SP), havia a bordo 1.700 passageiros, quando na realidade a capacidade era de no máximo 1.300. Uma parte havia sido embarcada clandestinamente pelo comandante em troca de propina. Cerca de 700 emigrantes italianos que se dirigiam ao Brasil encontravam-se a bordo. A tragédia repercutiu muito na época. Entre os que perderam a vida estavam o então bispo de São Paulo, José Camargo de Barros, e Homem de Melo, bispo do Pará.
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Benedito Calixto. Naufrágio do Sírio (1907)
De acordo com a historiadora Augusta Molinari, a viagem em si ainda hoje é um dos temas menos estudados da emigração histórica italiana. Molinari chama a atenção para a natureza de “percurso” e não de “lugar” da viagem. Este aspecto, observa, leva os escritores a se aproximarem mais da viagem dos emigrantes do que os historiadores. Já para os emigrantes, a viagem em si é uma pausa, um parêntese no projeto migratório.
As travessias da chamada grande emigração italiana (entre o final do século XIX e o início do século XX) foram narradas principalmente por aqueles que acompanharam a viagem in loco na condição de testemunhas (jornalistas, escritores, geógrafos, aventureiros, médicos de bordo, tripulantes) e não pelos próprios emigrantes, embora haja referências à viagem nas cartas que eles enviavam aos parentes na Itália, como demonstrou Emilio Franzina em seu livro Merica! Merica!.
O navio de emigrantes sintetiza o drama e a esperança, a vida e a morte. É no navio que acontece o primeiro encontro de línguas, de costumes e nacionalidades, um dos eixos da experiência migratória. Durante a travessia, os migrantes estão imersos na transitoriedade. Esta situação de trânsito permite – e favorece – que a angústia se acirre e exponha a vulnerabilidade dos migrantes. A incógnita em relação ao futuro e o medo do desconhecido crescem à medida que o navio se aproxima do destino.
Na literatura europeia do século XIX existem exemplos de obras com pelo menos alguns trechos sobre o tema da emigração – como é o caso de American Notes, de Charles Dickens (1812-1870), fruto da viagem que o escritor fez para os Estados Unidos e o Canadá. No capítulo The passage home, Dickens dedica duas páginas aos emigrantes ingleses que encontrou no navio de volta e retornavam para o país natal. Robert Louis Stevenson (1850-1894), por sua vez, publicou The amateur emigrant (1895), em que narra a viagem de Glasglow, na Escócia, para Nova York, a bordo de um transatlântico com emigrantes, em 1879.
Na literatura italiana destaca-se Sull’Oceano, de Edmondo De Amicis. Lançada em 1889, a obra é fruto da viagem que o autor fez à Argentina em 1884, a bordo do Nordamerica (chamado de Galileo no livro). O navio transportava 1.600 emigrantes italianos na terceira classe. O autor viajava na primeira. A trama se desenvolve no perímetro da embarcação e o enredo se detém nos 22 dias da travessia, portanto, o espaço e o tempo são pré-definidos.
Para os emigrantes – camponeses com uma forte ligação com a terra – o oceano era um universo enigmático e totalmente novo. Eles se sentiam aterrorizados com a possibilidade de perder a vida em meio à imensidão líquida: ter o próprio corpo jogado ao mar, sem direito a um túmulo, era uma hipótese que os deixava apavorados. Sull’Oceano teve uma influência significativa sobre a elite italiana da época. Em 1901 foi promulgada a lei n. 23, que estabeleceu o Comissariado Geral para a Emigração (responsável pelo controle e supervisão da emigração) e subordinado ao Ministério das Relações Exteriores. A lei instituiu comissões de inspeção nos portos de embarque para verificar se os navios respeitavam as normas sanitárias. Os emigrantes começaram a gozar da proteção dos patronatos e dos organismos de tutela nos países de destino. A lei foi ampliada em 1919.
No entanto, antes que esta legislação entrasse em vigor, vários navios que transportavam emigrantes italianos foram palco de epidemias. Não faltam histórias dramáticas. L’Odissea del piroscafo Remo, ovvero il disastroso viaggio di 1500 emigranti respinti dal Brasile (Mirandola: Tipografia Grilli Candido, 1894), de Cesare Malavasi, narra uma delas. O autor é um dos sobreviventes da tragédia que aconteceu com o Remo, cujos emigrantes foram recusados pelo Brasil em 1893 razão de uma epidemia de cólera a bordo. Noventa e seis passageiros morreram. Em Do outro lado do Atlântico (São Paulo: Editora Nobel, 1989), o historiador Angelo Trento lembra das tragédias dos navios Matteo Bruzzo, Carlo Raggio e Frisca, com destino ao Brasil. Nos dois primeiros, em 1888, contaram-se 52 mortos de fome. No terceiro, em 1899, houve 24 mortos por asfixia. É bem possível que tenham acontecido várias outras tragédias – ocultas e esquecidas.